Lamento dizer, mas um dos cérebros acima é saudável e o outro está meio bichado. Você saberia dizer qual é qual? Recebi uma mensagem em tom de desabafo de um grande e velho amigo que prefere se manter incógnito. Gostaria de saber o que você acha do que ele diz: ‘Uso computador há trinta anos. Antes disso já usava calculadoras de mão. Ao longo desse tempo todo, em função da tecnologização que vivenciei, esse processo informatizante em muitos casos me fez melhorar como pessoa, não só pelos novos conhecimentos que absorvi, mas principalmente pelas pessoas interessantes de quem me aproximei. Mas percebo que paguei um preço por isso. Aliás, vários preços, em diversas atividades ou aspectos da vida. Não pretendo aqui analisar os tópicos em alguma ordem coerente ou cronológica. Simplesmente, a esmo, decidi falar primeiro sobre a calculadora. Comecei a utilizá-la ainda no colégio, intensificando seu uso na faculdade. Nas provas de algumas disciplinas era proibido usar calculadora. Mas eu tinha conseguido comprar uma bem miudinha, uma das primeiras do mercado com tela de LCD. Cabia escondida na minha boca. E assim foi — burlei a proibição em várias daquelas provas e, confesso: o fato de ter usado a tal microcalculadora não me ajudou em absolutamente nada, pois minhas notas não melhoraram como eu esperava. A consequência do hábito de usar maquinetas de calcular foi que, com o tempo, perdi a prática de fazer conta de cabeça. Com lápis e papel ainda vai, mas dá uma preguiça danada. Na verdade, não sei até que ponto a perda dessa habilidade realmente me afetou a vida cotidiana. É claro, em algumas ocasiões em que precisei do resultado rápido de um cálculo, acabei ficando na mão. Mas fica uma impressão que, de alguma forma, eu piorei como pessoa ao longo desse processo específico. Meu amigo reclama da falta que lhe faz a capacidade plena de cálculo mental. Segundo ele, quando jovem, era capaz de verdadeiras façanhas aritméticas. “Guardar de cabeça telefone de namoradinha, então, fazia o maior sucesso”, disse-me ele. Outro tópico que me vem à mente, desordenadamente, como disse, é a googlemania. Com mil trovões, como é que eu conseguia viver antes de surgir o Google? E a Wikipédia — outra maravilha. Está tudo lá, virtualmente qualquer coisa que eu quiser pesquisar. Todo esse acervo ao alcance dos meus dedos em poucos segundos, em qualquer computador que esteja online. Antes era preciso ou ter uma enciclopédia em casa, coisa que nunca tive, ou ir à biblioteca ou à casa de um amigo que tivesse uma. Mapas? Só indo ao atlas ou a uma mapoteca. Nesse ponto, aumentou muito o conforto em minha vida. O acesso fácil e rápido à informação parece um benefício excelente. Só questiono o “para quê” de toda essa rapidez. Será que podendo saber coisas novas de maneira quase instantânea, isso melhora minha qualidade de vida? Não vejo indícios concretos de que isso seja verdade. É confortável? É. Mas e daí? Mas quer ver um outro aspecto negativo? O meu caráter. É, o meu, o seu, o nosso caráter, nossa honestidade. Desde que comecei nessa coisa de PC, já devo ter usado uns 500 softwares. Por quantos deles paguei? Resposta: no máximo dez. Se muito! O resto foi tudo programa pirata. Ou comprado na calçada, ou baixado de sites de warez, ou recebido de presente ou em intercâmbio com amigos. Nunca roubei nada, nem um palito. Mas software pirata eu uso. Eu sei, o original é caro e não teria grana para comprar tudo que uso e usei — é a desculpa mais comum. Mas ainda assim é roubo. É desonesto. É algo que me incomoda, especialmente agora que minha mulher está esperando um neném que, em poucos anos, vai abrir o armário lá do escritório da minha firma e verá um monte de CDs e DVDs dentro daqueles plastiquinhos transparentes típicos de software ilegal. O que é que vou dizer para ele? Pesadelos recorrentes afligem o pobre homem. Em grande parte deles, ele acaba algemado e sendo conduzido a uma delegacia por ter baixado infindáveis Terabytes de conteúdo pirata. Pobre camarada. E as músicas? Tenho até hoje minha coleção de LPs de vinil. E uma razoável coleção de CDs originais comprados. Mas depois que se firmaram o MP3 e os sites de música, desde o AudioGalaxy de saudosa memória, eu baixo toneladas de músicas pelas quais não paguei um centavo. É roubo, é desonesto. Mesmo argumento batido: o CD e do DVD são caros. Mas não justifica. Estou eu com Teras e Terabytes de músicas nos meus HDs. Uma coleção que, mesmo que vivesse 250 anos, não conseguiria ouvir e apreciar inteira. Tem mais. Se vou à locadora de DVD ou um parente ou amigo vai, peço o disco emprestado e copio, na maior cara de pau. As produtoras põem proteção e eu arranjo sempre um programeto que quebra o esquema, fazendo a cópia do mesmo jeito. E agora lá está, numa gaveta da empresa — uma coleção de filmes que provavelmente nunca mais irei rever, salvo raras exceções. Sim, a conclusão é clara. A mídia digital, junto com a facilidade de obtê-la, me transformou num ladrão. Em pequena escala, mas um ladrão. Começou com a cópia de um disquete, depois de uma caixa de disquetes, e deu nisso. Se alguém tivesse me chamado à atenção naquele começo, eu não teria ido adiante. E agora não sei como vou me explicar, primeiramente, à minha própria consciência. E em segundo lugar ao meu filhinho. E isso está me fazendo mal. Vou ter que dar um jeito nessa situação. Será que ele poderia passear na praia assim de mãos dadas com seu menino, tendo na consciência o peso de ter participado da febre planetária do downloads ilegais de arquivos e da pirataria desavergonhada? Parece pouco provável. Outra coisa que sinto ter me prejudicado é o teclado, este onde estou digitando o texto. O uso contínuo do teclado afetou minha letra manuscrita. Ela nunca foi grande coisa, meio garranchosa e horrenda. Só que agora, com o hábito de digitar, minha letra de mão está quase ilegível. E lenta, irritantemente lenta. Escrevo à caneta com a lentidão de um retardado. E quando me meto a escrever rápido, não consigo depois ler o que escrevi. Tem também a minha memória. Sei que a idade a deteriora, mas assim também não dá. Consigo lembrar de rostos, fatos e situações. Nomes? Apenas alguns. Mas decorar números e textos virou um suplício. Quando rapazote, já cheguei a decorar um livro inteiro para tirar nota dez em uma prova. Era como se fosse uma “cola” mental. A matéria era literatura. Memorizei o livro todo e tirei meu dez. Mas não me lembro de quase nada, exceto Catâneo e Padre Balda, personagens de “O Uraguai”, de Basílio da Gama, informações absolutamente irrelevantes para a vida de qualquer pessoa normal e que adoraria ver deletadas do meu querido encéfalo. Fora isso, com o hábito de ler mais páginas web do que páginas em papel, minha antiga resistência a longas horas de leitura foi para o beleléu. Não aguento mais ficar sentado lendo um livro por horas e horas a fio. Aliás, nem tenho mais em casa uma poltrona para leitura. Ou é o sofá, que me faz dormir, ou a cama, que me faz dormir mais rápido ainda. Quanto ao aspecto físico, trabalhar diante do computador é a coisa mais perfeita do mundo para criar barriga. Usar a máquina também é algo perfeito para tirar a paz de espírito de um ser humano pseudonerd. Sempre tem alguma coisinha que dá pau em um computador. Ou é um dispositivo, uma conexão, um componente, uma configuração, uma incompatibilidade ou um bug. É exasperante. Nunca fica funcionando tudo bem por meses direto. Dá sempre uma m_e_r_d_a. E aí, é hora de parar o que se está fazendo e tentar consertar a pane. Tem também o celular, sem dúvida, a maravilha mais notável da tecnologia. Fala-se com qualquer pessoa a qualquer hora e em qualquer lugar — mas só se ela estiver dentro da área de cobertura, é claro. E tem o outro lado da moeda. Sou encontrável o tempo todo. Tudo bem, tem gente para quem eu quero ser encontrável. Mas outros não, não quero que saibam onde estou nem que consigam falar comigo a qualquer instante que desejem. Mas a gente acaba entrando nessa onda e é difícil sair. Deixamo-nos levar pela corrente. E o celular toca... e eu quase sempre atendo. Que tipo de adulto se tornará um neném que já vem ao mundo inserido em um contexto tecnológico onipresente e onipotente? Não se sabe. Nem se desconfia. O vício de computador também é um ponto preocupante. A pessoa senta diante da máquina jurando a Deus que vai ficar só cinco minutinhos para resolver alguma coisa muito específica e pontual. Mas não fica. Tem sempre aquela distração, aquele videozinho, aquele site maneiro, aquela mensagem especial de um amigo que requer providências e resposta imediata. E a coisa não acaba mais. Aliás, só acaba quando a criatura já está no meio da madrugada, batendo cabeça, e começa a pensar no lixo sonolento que será seu dia seguinte. Nessa questão do vício, o tempo dispendido defronte o computador é algo também muito preocupante. Quanta coisa mais interessante, construtiva e humana eu poderia ter feito com as bilhões de horas que passei grudado na máquina. Minha capacidade de concentração também está descendo pelo ralo. Às vezes meio que amaldiçoo o inventor do hipertexto, que enfiou no texto convencional os terríveis links. Sim, eles apontam para informações adicionais, páginas web interessantes, fotos esclarecedoras, vídeos ilustrativos etc. Mas onde fica a linearidade da minha atenção? Onde foi parar o encadeamento serial de atividades do meu pensar e do meu sentir? Tudo isso virou uma grade fragmentada de instantes de atenção. Focos superficiais e fugidios. Gasto meu tempo aprendendo versões novas de programas que continuamente se complicam sem que eu jamais tenha pedido aos fabricantes que os tornassem tão complexos e poderosos. Gasto meu dinheiro com upgrades para que minha máquina possa rodar esses softwares estupidamente “melhores”. Compro gadgets, equipamentos, suprimentos e mais e mais discos rígidos, estes últimos para armazenar as centenas de Gigabytes de material audiovisual e de textos que, na minha burrice de iludido, um dia, quando estiver bem velhinho, terei tempo e paciência para ver, escutar e ler. Bobalhão, até parece.’ |
quinta-feira, 9 de dezembro de 2010
“MEU CÉREBRO ESTÁ ATROFIANDO. É TARDE DEMAIS?”
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